Até aquele momento da turnê, a chuva parecia nos perseguir. Chegamos em Brasília com o tempo fechado. Do aeroporto, ainda destruídos por Belo Horizonte, tomamos um Uber rumo ao hotel. Mais uma vez somos enlatados dentro de um carro – algo que iria se repetir infinitamente nessa digressão comemorativa dos 30 anos do Mechanics. Porta-malas lotado, equipamentos no colo, nos pés, em cima das cabeças. Descobrimos uma nova capacidade nos membros da banda: o contorcionismo pragmático.
Dos dois quartos locados, somente um tinha o check-in liberado antecipadamente. Deixamos nossa tralha lá dentro e fomos para o shopping Pátio Brasil fazer uma refeição decente. Na estrada, este é um momento raro e muito precioso. De volta ao hotel, outro ataque de prudência: uma bela dormida até a hora do show. Menos o Nicolas. O garotão ainda arranjou disposição para curtir uma piscininha.
A chuva, apesar de não muito forte, manteve-se constante. Isso não impediu o público de comparecer à Infinu, pico consolidado no circuito alternativo como um um dos melhores do país. As bandas Imortal Joe e Venosa deram início aos trabalhos com classe e categoria. Enquanto isso, eu cumprimentava os infinitos amigos da capital federal, ao mesmo tempo em que montava a mesa do merchandising – e ainda divulgava nossa ação contra o assédio, parte integrante do projeto da Lei Paulo Gustavo que viabilizou toda a tour.
Num dado momento, pânico: percebo que minha carteira não está no bolso. Documentos, cartões bancários e até 50 mangos – de uma rara venda em dinheiro vivo na noite anterior em BH – haviam desaparecido. Depois de procurar em todos os lugares possíveis, acalento a esperança de ter esquecido a dita cuja no hotel. O trabalho agora era não deixar a preocupação afetar o nosso show. As cervejas ajudaram nesse quesito, obviamente.
Os parças do Galinha Preta fazem o show da noite. Jogando em casa, mas pela primeira vez no palco da Infinu, não deixam pedra sobre pedra. Frango, um impagável frontman, traz o público na palma da mão, destilando bom-humor, sagacidade e hardcore em doses cavalares. Ou melhor, galinhares. É sempre uma alegria presenciar uma plateia extasiada.
Subimos ao palco com a adrenalina a mil. Complicado falar de si mesmo sem ser cabotino ou injusto, mas uma coisa é certa: ninguém nunca viu um show do Mechanics sem que estivéssemos com sangue nos olhos. É o que acreditamos ser a essência do Rock e, por conseguinte, nossa própria essência. Ao final do set, pedidos de bis fizeram com que esticássemos o repertório por mais quatro músicas.
O domingão já avançava sobre a segunda-feira braba, o cansaço era grande, mas a sensação era muito maior que a de missão cumprida. Dada a proximidade de Goiânia, desenvolvemos com Brasília uma relação pra lá de íntima ao longo dessas três décadas. Então, não existe coisa melhor que estar ali, no meio de tantos amigos que compareceram em peso para nos prestigiar. Citar nomes seria uma indelicadeza da nossa parte – e todo mundo que conhece o Mechanics sabe que somos indelicados exclusivamente no palco.
Se engana quem imagina que voltamos ao hotel para uma merecida noite de repouso. As obrigações da vida mundana urgem. Pegamos as bagagens e nos esprememos mais uma vez numa lata de sardinha, quero dizer, no carro pilotado por Andréa, motorista que nos conduziu com segurança até Goiânia. O esgotamento físico foi enorme, mas acordar em casa não tem preço. A semana seria intensa, afinal precisávamos preparar o show no Centro Cultural Martim Cererê, bem como a viagem para o Rio de Janeiro, próximo destino da tour.
A carteira? Até hoje não tive notícias dela.