Eddie Vedder: o último dos moicanos do grunge (e o primeiro a consertar um ukelele com silver tape)

Tem gente que já nasce com uma urgência no peito. Com aquele tipo de sensibilidade que parece um radar sempre ligado. Eddie Vedder era assim. Filho único de uma história confusa, nasceu em Illinois, no dia 23 de dezembro — quase um presente de Natal. Só que a embalagem era feita de caos.

Criado num bairro periférico, com mais sete crianças adotadas, Eddie cresceu no meio da bagunça, mas logo mostrou que tinha algo diferente. Aos 9 anos, a mãe deu um ukelele quebrado de presente. Qualquer outro moleque talvez largasse aquilo de lado. Mas o Eddie pegou uma silver tape, consertou do jeito dele e tirou som. É disso que a gente fala quando diz que a resiliência às vezes começa no quarto de uma criança — com fita adesiva e um sonho.

Aos 12, ganhou a primeira guitarra. E mergulhou. Curtia The Who, Duran Duran, Tom Waits, Bruce Springsteen… mas o disco que estourou sua mente foi ABC, do Jackson 5. Dizia que ali entendeu que a música podia ser um lugar de calma em meio ao barulho de dentro. E esse barulho já era alto.

A mãe, Karen, teve o Eddie com Edward Severson, mas o casal se separou cedo. Logo ela se casou com Peter, um padrasto duro, com quem Eddie nunca se deu bem. Cresceu achando que ele era seu pai biológico. Só descobriu a verdade na adolescência — e, pra piorar, tarde demais. Seu verdadeiro pai era um amigo da família, por quem ele tinha afeto, mas que já tinha morrido quando ele soube. Esse tipo de revelação é uma quebra de identidade — um corte profundo no que, na psicologia, chamamos de “memória emocional de pertencimento”.

Com 15 anos, foi embora de casa. Trabalhou, pagou conta, mal dormia. Chegava na escola exausto. Enquanto os colegas tinham lápis na mochila, ele carregava boleto de luz e aluguel. Era um adolescente vivendo como adulto — e esse tipo de inversão de papéis, chamada de parentalização, marca a gente pra sempre.

Quando precisava respirar, se jogava na música. Fugazi, Black Flag, Ramones… e aí a escola ficou pra trás. Em 1984, já em San Diego, fez supletivo, virou segurança de hotel e seguia gravando demos no quarto. A música ainda era hobby, mas já funcionava como catarse. Como válvula de escape emocional — uma forma de regular o afeto quando nada mais dava conta.

Tímido, quase recluso, Eddie chegou a tocar de máscara no primeiro show. Não era personagem: era proteção. E isso, a gente sabe, é muito comum em quem cresceu engolindo sentimento. Ele mesmo dizia que no palco podia ser alguém que, fora dali, ainda tava aprendendo a ser.

Até que a vida resolveu dar um empurrão. Jack Irons, ex-batera do Red Hot, mandou pra ele uma demo de uma galera de Seattle procurando vocalista. Ele ouviu, amou, e enquanto surfava — outra paixão sua — foi criando as letras e melodias que dariam origem a Alive, Once e Footsteps. Tudo baseado nas questões com o pai. A música sempre foi onde ele colocava o que doía.

O Pearl Jam nasceu em 1990. E logo virou um dos maiores nomes do rock. Mas antes disso, a primeira vez que ouvimos a voz do Eddie em estúdio foi com o Temple of the Dog, projeto do Chris Cornell em homenagem ao amigo Andrew Wood. Foi também ali que começou a amizade dele com o Chris — duas almas cheias de sombra e luz.

Com Ten, o Pearl Jam explodiu. E Alive, que foi escrita como um desabafo de dor, virou hino de resistência. O Eddie mesmo disse que, no começo, cantar aquela letra era pesado — parecia uma maldição. Mas ver o público gritar o refrão com alegria transformou tudo. “A maldição virou bênção”, ele disse. É o público fazendo com a música o que muita gente tenta fazer na terapia: ressignificar o trauma.

Com o tempo, o tímido virou furacão no palco. Se jogava, escalava, se entregava. Ganhou o apelido de “Crazy Eddie” — mas fazia tudo isso sóbrio. Nunca foi das drogas pesadas. A raiva, a dor, a angústia — tudo era canalizado na música. O que, de fato, é uma das formas mais saudáveis de elaborar.

Hoje, Eddie é o último sobrevivente do grunge em plena atividade. Viu os amigos partirem um a um: Kurt, Layne, Chris… e sentiu o peso de cada perda. Quando o Chris morreu, ele disse algo que me marcou: “Eles não estavam tentando fazer músicas tristes. Aquilo era real pra todos eles.” E é aí que mora o ponto: a arte deles era corpo, era sangue, era carne viva.

Anos atrás, tive o privilégio de apresentar um show do Pearl Jam pela Band. E um dia, do nada, dei de cara com o Eddie, saindo sozinho do Paris 6. Simples, gentil, humano. Tirei uma foto, claro. E só confirmei o que já sabia: ele é real.

Eddie Vedder é a prova de que dá pra transformar dor em som, confusão em poesia e passado em impulso. É a lembrança viva de que sobreviver, às vezes, já é revolucionário.

Vida longa a ele — o moicano que ficou.

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