Eu tinha algo em torno de 16 anos de idade. Era a segunda metade dos anos 80. Já era roqueiro. Um headbanger, para ser mais exato. E uma bomba atômica caiu sobre a minha cabeça: ANTES DO FIM, álbum da seminal banda carioca Dorsal Atlântica.
Aquilo mudou tudo. Era um som extremo, simultaneamente cru e moderno. Pela primeira vez eu ouvia o cruzamento entre heavy metal e punk/hardcore. O tal crossover – que eu nem sei se já havia sido batizado àquela altura. E as letras… Nada de diabinhos chifrudos e cavaleiros empunhando espadas contra dragões. Era a realidade mais dura que se plasmava nos versos nunca alienados de Carlos “Vândalo” Lopes. Em português dos mais brasileiros.
Alguns anos mais tarde, visitando uns primos no interior de Goiás, me chamam pra fazer um som. Eu não sabia tocar absolutamente nada. Ainda não sei. Os dois irmãos tinham uma pequena aparelhagem em casa, com bateria, guitarra e amplificadores. Botaram um microfone na minha frente e perguntaram: “O que você vai cantar?”. Na cara dura eu disse “Guerrilha”, música da Dorsal – banda que eu mesmo havia apresentado a eles. Deu certo. E naquele exato instante eu tive a convicção que mais cedo ou mais tarde me tornaria vocalista.
Mais de três décadas depois, fazia todo o sentido convidarmos a Dorsal Atlântica para a tour comemorativa 30 Anos de Mechanics. Dito e feito. Organizamos então uma dobradinha: dia 22 de novembro, sexta, a Monstro Discos produziria uma espécie de Mechanics Fest em Goiânia – obviamente no Centro Cultural Martim Cererê, nosso lar. E no dia seguinte, partiríamos para a terra natal dos caras, o Rio de Janeiro. Noites antológicas.
O clima no Cererê era de festa. Confesso ter ficado emocionado com tanta gente nos parabenizando pelos trinta anos de estrada. Às vezes, a falta de distanciamento dificulta uma visão mais apropriada das coisas. Mas esse feedback acerca de uma trajetória de tanto tempo num modelo absolutamente independente nos deixa convictos do caminho percorrido até aqui.
Madam No Mercy, banda nova e promissora, chegou com o pé na porta, seguida pelo grind ultraviolento do Zeugma. A lenda local Spiritual Carnage deu continuidade à devastação sonora até chegar a nossa vez de subir ao palco. A resposta do público não poderia ser melhor. E para finalizar a noite, eles, a Dorsal Atlântica, em performance apoteótica – que cabotinamente contou com minha participação em “Gerrilha” e culminou com Carlos Lopes encarnando Iggy Pop e abaixando as calças. Memorável.
Mas nem tudo são flores. Como tínhamos que estar no aeroporto de madrugada para o voo rumo à capital carioca, a correria foi enorme e sem descanso. Após conexão em BH, chegamos à cidade maravilhosa. Deixamos os equipamentos no hotel e caminhamos pela Lapa, debaixo de fina chuva, ouvindo as aulas de história e arquitetura de um nada vândalo Sr. Lopes. O almoço foi na Cinelândia, no Amarelinho, clássico point da boemia, regado a chope e bate-papo.
Voltamos para o hotel para um necessário descanso. Como o show tinha horário para acabar – a Dorsal deveria terminar sua apresentação às 23h, combinamos sair por volta de 18 horas rumo ao La Esquina, local da gig. Mas a exaustão falou mais alto. Em um dado momento vejo o Katu se movimentando no quarto, onde estávamos todos juntos. Ele então pergunta: “E aí, que horas a gente vai?”. “Que horas são?”, é minha vez de inquirir. Ele responde: “Oito e dez.”
Num sobressalto, eu, Pedro e Nicolas saltamos da cama. Tínhamos que estar no palco às 20:30h! Katu e Pedro saem em debandada, com toneladas de equipamento debaixo do braço, em busca de um táxi. Eu e Nicolas vamos em seguida, mas decidimos ir a pé – ou melhor, correndo –, já que o La Esquina era próximo e tomar uma condução poderia nos atrasar ainda mais. É óbvio que perdemos a apresentação da excelente Onda Errada HC.
Adrenalina a mil, enxugamos o set list e damos início ao nosso show. Conexão total com o público e uma das melhores performances da tour. Mesmo após a apresentação, a excitação demora a diminuir. Era a vez da Dorsal assumir o La Esquina e fazem isso com maestria, num show ainda mais intenso que o de Goiânia. Carlos, em noite inspirada, esmerilha sua indócil guitarra baiana – uma guitarra em formato diminuto que sempre deixa a plateia atônita.
Mesmo como todas as intempéries, conseguimos terminar os shows no horário combinado. Foi uma prova de fogo. Mas não somos nós que vivemos cantando que o que interessa é como se atravessa o fogo?
Ainda ficamos no La Esquina por um tempo, a ponto de perceber a mudança no público. Saem os roqueiros ávidos por música ao vivo e entram gringos aos borbotões, sacolejando ao som do funk carioca disparado pelo DJ que ocupava o palco, agora completamente limpo de instrumentos e amplificadores. Transubstanciação que só a cidade maravilha purgatório da beleza e do caos consegue oferecer. Saímos dali, deixamos nossos equipamentos no hotel e começamos uma peregrinação pelos bares da Lapa que só teria fim com o raiar do sol.
Enquanto eu e Katu tentamos nos recuperar dos dias anteriores, Nicolas e Pedro, mais jovens, encontram energia para ir a Ipanema. Nicolas, diga-se de passagem, foi um verdadeiro pinto no lixo durante toda a tour, aproveitando tudo e mais um pouco. Domingão ainda nos reservava o show em Niterói, mais precisamente no Espaço Barricada.
Quem me falou do Barricada foi Bacalhau, baterista da formação clássica do Planet Hemp – por formação clássica entenda-se a turma que foi parar na cadeia. Minha ideia sempre foi fazer as viagens renderem, tentando emendar alguma apresentação às datas oficiais. O Barricada é a ocupação do antigo prédio do DCE da UFF. Um verdadeiro squat punk. Mais Mechanics não poderia existir. Durante a pré-produção, agilizo tudo com os camaradas Jean e Matheus, ambos do Onda Errada HC. No line up, além da gente, Virias Fatal e Dani Vallejo.
Cruzamos a Ponte Rio-Niterói e chegamos ao pico. Um vazamento de água tomava conta da entrada. Matheus e Jean tentavam há horas contornar a situação. Katu e Pedro haviam adoecido, com uma gripe (ou algo parecido) batendo forte. Sou acometido por uma dor de barriga aguda. Os banheiros do lugar estavam completamente sem condições de uso. Saio na rua e vejo um shopping do outro lado da rua. Benditos templos do capitalismo.
Por problemas de formação, o Virias Fatal não conseguiu se apresentar. Era a nossa vez. Meio adoentados, damos o nosso máximo diante de um público minúsculo. Jogar bem quando se tem tudo a favor é moleza. A escola do Mechanics é outra: quanto maiores as dificuldades, mais nos desdobramos para oferecer uma experiência única para os presentes. E não é que tinha um cara que havia nos conhecido na noite anterior e foi até Niterói para nos ver em ação novamente? É assim que as coisas são.
Dani Vallejo fez um showzaço. Projeto solo da vocalista da excelente Blastfemme, Dani é das melhores artistas da atualidade, contabilizando participações em Rock in Rio, Rock the Mountain e mesmo no nosso Goiânia Noise Festival. Performance sofisticada e atitude punk. Foda!
Tendo que pegar no batente na segunda pela manhã, Pedro parte para o Galeão. Eu, Katu e Nicolas voltamos para a Lapa, onde reencontramos Dani no incontornável Bar da Cachaça. As cervejas e bate-papo avançam madrugada adentro.
Rock é isso aí, meus caros.
P.S. 1: O projeto inicial desta coluna previa quatro edições de duração. Como a estrada é longa, a 89FM Goiânia deu carta branca para finalizarmos os relatos da tour semana que vem. Espero vocês!
P.S. 2: Nesta quinta, 12/12, fazemos nosso último show do ano no Shiva Alt-Bar, a partir das 20h, numa mescla de Mechanics e Nirvanics (nosso projeto tributo ao Nirvana). Bora lá que vai ser divertido!
P.S. 3: Neste final de semana a MMarte realiza a Pop – Feira de Artes, na Vila Cultural Coralina. Entrada franca e ótima chance de fazer as compras de Natal mais descoladas de sua vida. Todo mundo convidado!